Promising Young Woman(2020)
de Emerald Fennell, com Carey Mulligan, Bo Burnham, Laverne Cox, Alison Brie, e Alfred Molina
«De um mundo
onde – quase - todos os homens são assholes, e onde uma ida a um
bar se pode tornar no maior pesadelo de qualquer sleazeball, chega-nos: Promising
Young Woman. Um filme onde a justiça é servida fria, com uma dose extra-cáustica
de sociopatia e açúcar»
Antes sequer de começar a falar
do filme – Promising Young Woman (2020) de Emerald Fennell: um “pequeno”
preâmbulo – raramente tenho oportunidade de usar esta palavra, tive que
aproveitar -:
Este filme é um filme que, -
curiosamente, ou talvez nem tanto assim - me deixa a pensar mais sobre as
implicações do filme, do que propriamente no filme. E porque é que
me deixa a pensar mais nas implicações do filme do que propriamente no filme? Porque
o filme é um animal delicado. É delicado porque está fortemente assente num tema
e num conjunto de vivências que eu, na minha condição de não possuidor de vagina,
nunca irei ter – “nunca digas nunca”, eu sei -. Questionei-me -
demasiado frequentemente - se seria a pessoa certa para criticar o filme
justamente por isto: “questões de parcialidade”. Será que o facto de eu ser
homem altera a minha percepção do filme? Será que me consigo distanciar o
suficiente para conseguir ser crítico deste filme, sem o criticar pelo conteúdo?
Será que consigo manter-me minimamente imparcial para poder falar deste filme
em particular já que “eu” sou objecto de escrutínio pelo filme? “Será que por
eu ser homem a minha opinião vai ser automaticamente escrutinada justamente
porque: sou homem?”; “Será que a opinião de uma mulher teria mais valor porque
é mais relacionável?”; “Será que eu teria uma opinião diferente do filme se
fosse mulher?”; “Será que deveria ter sido uma mulher a escrever esta crítica?”;
Bom, a única coisa que realmente sei, é que são demasiados serás. Mas a
conclusão a que acho que cheguei é de que, já que as questões de
objectividade e parcialidade são sempre uma constante no acto de criticar, já
que usamos sempre como ponto de referência as coisas que conhecemos e que
vivemos, o facto de não ser mulher e sim ser homem, dá-me benefícios - e handicaps
- para o que pode ser o entendimento deste filme (sei que já usei a palavra
“filme” muitas vezes neste l-o-n-g-o parágrafo, mas vá, sejamos pacientes:
já terminei).
E agora sim, com isto dito, vamos
lá falar do filme:
Trata-se de um sugercoated,
bubblegum, pop, wet-dream, que pinga sacarose, em todas as
cores do millenial rainbow. É um misto de géneros, pelo que acho
complicado o pôr numa caixa particular. Parte psychological thriller,
parte (anti)rom-com, parte horror. Acho que posso dizer que se trata de
uma “fábula feminista” – não porque os eventos sejam irreais, mas porque desde
o primeiro momento do filme, que fico com a sensação de que que está para vir –
directa ou indirectamente - uma punchline moral -. Spoiler alert:
ela vem.
Visualmente, é um filme muito
bonito – peço desculpa pela forma pouco eloquente de o descrever, mas para quê
complicar? -: todos os enquadramentos são perfeitos e pensados ao pormenor. É
um filme tão bonito, que gostaria bastante de poder imprimir vários stills
e tê-los emoldurados na minha parede, porque sim: it’s that beautiful. Mas
como são tantos, isto acabaria por ser financialmente incomportável. Há
claramente um investimento muito grande no departamento de arte, e isso
nota-se. É um trabalho invejável da directora de arte Liz Kloczkowski. Acho que a melhor comparação que se pode fazer neste
departamento em relação a este tipo de investimento, são com os filmes do Wes
Anderson, ainda que sejam esteticamente completamente diferentes.
É um filme encantador (não só
pela fotografia e pela arte), e que me consegue deixar desconfortável cerca de
75% do tempo – 25% não, porque há momentos mais ligeiros. Mas não é por isso
que deixa de ser um excelente filme. A realidade do filme é estilizada e
estereotipada, com ligeiro híper-exagero em alguns aspectos, o que dá a este
filme um certo desconforto surrealista, muito ao jeito do que se vê no trabalho
da fotógrafa/filmmaker Nadia Lee Cohen, ainda que com motivos completamente
diferentes, ou no Greener Grass (2019) de Jocelyn DeBoer e Dawn Luebbe. Acho
que também posso dizer que é uma espécie de anti-The Stepford Wives
(2001) de Frank Oz, porque rejeita a ideia de subserviência feminina. Convém não
esquecer que isto é essencialmente um filme de emancipação, onde a personagem
principal, a drop-out da faculdade de Medicina, Cassie (interpretada por
Carey Mulligan), é uma vigilante astuta e amarga que, movida por um rancor a
descobrir, procura dar lições a homens duvidosos na noite. Trata-se de uma
protagonista cuja catarse nem sempre se vê alcançada de uma forma a que muitos
especialistas da área da psicologia poderiam chamar de “saudável”, um bocado
como o que acontece no Joker (2019) de Todd Philips. Mas sem ser um
palhaço. E sem ter mommy e daddy issues.
Grande parte das situações que se
desenrolam parecem ter sido transcritas da realidade, o que às vezes pode parecer
demasiado estereotipado. Brinca muito com pré-conceitos, e é irónico e mordaz
na forma como se serve dos diferentes elementos que servem a história. Há
momentos em que o cinismo parece falar mais alto do que as restantes intenções,
o que deixa – a mim pelo menos, deixou - um travo azedo a cinismo
– e atenção que eu próprio também sou cínico -. A história evolve de uma
maneira inesperada e deixa-nos quase sempre na ignorância em relação ao que irá
acontecer a seguir. Posto isto, tudo parece ser razoável dentro do que é a
realidade desconfortável desta história, portanto, é aceitável que as coisas
assim sejam: por mais improváveis que por vezes possam parecer. Alguns eventos
parecem-me ser exagerados, ficcionalizados vá, porque há reações que, na minha
condição de homem, sei que não são sempre assim... Mas acho que isto não é só
porque sou homem.
Sei que há uma série de
pressupostos que os leitores também vão fazer sobre aquilo que eu escrevi. Porque
no final do dia, todos – tal como a realizadora, tal como este filme, e tal
como eu -, trabalhamos com pressupostos. Porque todos somos – de uma forma ou
de outra -, parciais. E é porque é isso que – em parte -, nos ajuda a fazer
sentido do mundo.
Imparcialidade é um mito, amigos.
Abracem-na e sejam felizes.
Tanto quanto eu fui ao ver este
filme pouco ortodoxo que ainda assim: ticks all the boxes.
Excepto quando via o pescoço da
Carey Mulligan que, por não me parecer de alguém com 30 anos, me tirava a suspension
of belief, e por consequente do filme, em vários momentos. Mas é um filme mesmo
muito interessante, e diferente. E não é só para mulheres: é para o menino, e
para a menina. Vejam. Mesmo.
