A Secret Love(2020)
de Chris Bolan, com Terry Donahue, Pat Henschel, Diana Bolan, Kim Donahue e Tammy Donahue.
“(Terry):
No regrets. I’d do it all over again… I think love is love and that’s the
most important thing.”
2020.
O ano que findou há pouco menos de um mês e que deixou marcas ferozes na
memória de cada um de nós – não só pela pandemia viral que ainda assola o mundo,
decidida a bater à porta de todas as classes, faixas etárias e nacionalidades;
mas também, pelas diversas derrotas que a democracia sofreu e pela empatia que,
em muitas ocasiões, se ausentou.
Realizado
por Chris Bolan e produzido por Ryan Murphy, criador das populares séries
norte-americanas, Glee (2009-2015) e
American Horror Story (2011-),
A Secret Love estreou
na plataforma de streaming, Netflix, no mesmo ano em que o político
ultraconservador, Andrzej Duda, conhecido pelas suas medidas anti-LGBTQ+, foi
reeleito Presidente da República na Polónia, membro da nossa União Europeia. Faço
este termo de comparação sabendo que poderia fazer outros tantos; porém, faço-o
porque encaro com alguma curiosidade a natureza paradoxal dos dias de hoje: se por um lado, vivemos o auge da tecnologia e
informação, por outro, temos líderes autoritários como “vizinhos”. Faço-o
porque é triste pensar que este documentário que trago hoje, foi lançado num
ano em que ainda reinou a incompreensão, o ódio e a marginalização de minorias.
Faço-o porque é importante refletir sobre o papel educativo e humanizador da
cultura – uma discussão, mais do que nunca, extremamente necessária.
Posto
este pequeno desabafo, A Secret Love é um documentário de uma sensibilidade
descomedida que nos conta a história comovente de Terry Donahue e Pat Henschel,
duas mulheres canadianas, que se amaram em segredo durante mais de seis décadas. Gravado e produzido ao longo
de, aproximadamente, 10 anos, este é um dos filmes de 2020 capaz de arrancar
uma boa quantidade de lágrimas adocicadas.
Conheceram-se
em 1947, num domingo de manhã, enquanto jogavam hóquei no gelo em Saskatchewan,
Canadá. Terry, de 22 anos, pertencia à All-American Girls Professional Baseball
League onde jogava basebol… de saia; e, Pat, de 18, tinha tido até então, uma existência
tatuada pela perda precoce da sua mãe e irmão e pela relação agitada que mantinha
com a família que lhe restava. “I’m a reader. And I read lots of stories,
but I’ve never known one where another woman had loved another woman. Above all
things, I hope it’s mutual.”, leu Terry num bilhete que Pat depositou na
sua mão, nervosamente, uma noite, antes de se despedirem. Assim começou o
romance sigiloso que prometeriam uma à outra durante 72 anos – com poemas de
amor rasgados na assinatura; beijos trocados em tempestades de areia, onde
nenhuma alma as conseguia ver; e noites passadas em hotéis sem malas de viagem.
Através
de um arquivo de fotos e filmagens e de uma banda sonora tão mágica quanto
sedutora, liderada pelo clássico de Doris Day “Secret Love”, que ganhou um
Óscar para Melhor Música Original em 1953, o espectador vê-se transportado para
o período pós-guerra nos Estados Unidos, onde, apesar da vida boémia e das
roupas bonitas, vários grupos de pessoas continuam a ser perseguidos por serem
suspeitos de se envolverem com o mesmo sexo. No entanto, esta é uma das nuances
do documentário que se esbate muito timidamente. Chris Bolan, realizador e
sobrinho de Terry, versa a história das suas tias com cuidado e carinho. Não há
uma preocupação obstinada em condenar a sociedade que as oprimiu durante tanto
tempo, porque não é disso que se trata. A clandestinidade que o amor delas sofreu
é, no filme, apenas mais um dos grandes desafios que ultrapassaram juntas. É
por este motivo, que A Secret Love fica, facilmente, guardado nos murais
do nosso coração – não tenta, em momento algum, ser mais do que aquilo que é. É
íntimo, é puro, é verdadeiro e não precisa de adereços. É sobre a aventura que é
amar, mesmo perante todas as adversidades.
O
documentário é, então, norteado por duas narrativas: uma materializa-se em
objetos e recordações do passado, contextualizando assim a relação de Pat e
Terry, onde ambas falam abertamente sobre a sua juventude, família, sexualidade
e sobre a relação que construíram; a outra narrativa decorre no presente e explora
a questão do envelhecimento, a perda de independência e a resignação com aquele
que é o último capítulo. Esta linha temporal, em concreto, é tocante porque nos
oferece depoimentos dos parentes mais chegados das protagonistas não só sobre a
sua visão deste amor, mas também sobre a sua perspetiva pessoal da história no
que toca ao segredo, ao preconceito e, agora, ao fim. O filme alicerça-se essencialmente
num ambiente familiar que abraça do início ao fim, contando, desta forma, com
imensas cenas caseiras e reais – até porque é tudo filmado dentro da família do
próprio realizador – que propiciam o nosso envolvimento emocional. Afinal, é
inevitável. Estamos a falar de uma hora e meia de duas senhoras, na casa dos
90, que nos contam ternamente a sua história de amor proibida enquanto tentam
derrubar problemas de saúde, na esperança de ficarem só mais um bocadinho nos
braços uma da outra. É impossível ficar indiferente ao pedaço de genuinidade
que elas nos oferecem.
A
Secret Love é, na sua inocência, um retrato orgânico do que é fugir «à
regra» dentro de um sistema que tenta extinguir tudo o que é diferente, só por
ser diferente. Entre os recortes de jornais dos anos 40/50 que continham os
nomes, profissões e idades dos “suspeitos de homossexualidade”, a propaganda
estatal que é revisitada no documentário, os testemunhos de suicídios,
deportações e encarcerações por causa do número de peças de roupa femininas; entre
todos estes ingredientes asquerosos que compunham o cenário desta relação e de
tantas outras, aquele que mais me perturba é o confronto com o medo, que
assombra tantas pessoas, de ser repudiado pela própria família. “O medo de
perder o amor de quem gostamos”, como diz Terry. Esta é das ideias mais
dilacerantes desta jornada visual e aconselho-a, vivamente, a quem, por vezes,
não consegue encontrar a tolerância dentro de si.
Por
fim, e pegando naquilo que disse ao início, A Secret Love é uma ode ao amor
– a todos os tipos de amor – mostrando-nos que, mesmo nos tempos mais difíceis,
contra os políticos e instituições mais cruéis, o amor descobre sempre caminhos
e meios para triunfar.
